Comunidades tradicionais e construções sustentáveis ganham espaço no novo Plano Diretor de Fortaleza
22/10/2025
(Foto: Reprodução) Entenda a proposta do IPTU Verde, em discussão no novo Plano Diretor de Fortaleza
Andar entre plantas e espaços arborizados, depois de um dia cansativo. Terezinha Patrício está há dois meses morando num condomínio do Bairro de Fátima e já adotou a prática de descer às áreas comuns e aproveitar o verde espalhado no empreendimento. “Eu acho importante porque a árvore, a natureza, transmitem uma energia, oxigênio puro. Tem hora que dá vontade de armar a rede ali debaixo e ficar”, conta apontando para um caramanchão cheio de trepadeiras na área de lazer do edifício.
Condomínios em Fortaleza têm investido cada vez mais em espaços verdes e soluções que dão ênfase a usos sustentáveis. O edifício de Terezinha tem quinze anos e vem adotando essa mentalidade há algum tempo. Os moradores investiram em rampas de acessibilidade, sensores de presença para economia de energia, sensores de bombeamento de água, substituição de lâmpadas comuns por LED.
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Além disso, há quatro anos, instalaram uma usina de placas solares na laje técnica para produzir a própria energia limpa. “Aqui no condomínio, a gente vem sempre buscando soluções sustentáveis que impactem positivamente o meio ambiente e que sejam vistas a médio e a longo prazo. Até porque a gente pensa muito nas pessoas que virão após a nossa passagem por aqui”, afirma Willame Gomes, o síndico profissional do condomínio.
Essas iniciativas sustentáveis têm destaque especial no novo Plano Diretor Participativo e Sustentável de Fortaleza (PDPS), que está sendo debatido este ano e deve ir a votação em novembro na Câmara Municipal. Elas podem ensejar a aplicação de um novo instrumento de incentivo fiscal, o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) Verde.
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Pela minuta apresentada pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento de Fortaleza (Ipplan), imóveis em que os proprietários, possuidores ou responsáveis adotem ações práticas de conservação e preservação do meio ambiente natural vão conseguir descontos no imposto.
“Se o empreendedor, o construtor, ele faz um prédio e ele faz uma pracinha em frente, ele vai cuidar de uma área verde ao lado, um microparque, ou então, no próprio prédio já cria uma série de condições, ele pode ter o IPTU verde, ele vai ter uma redução no IPTU. Porque ele está investindo em áreas verdes ou estimulando a presença de áreas verdes, assumindo a gestão de áreas verdes”, explica Artur Bruno, diretor do Ipplan.
Construções sustentáveis e soluções baseadas na natureza
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O novo Plano Diretor prevê aplicar o IPTU Verde a partir de dois grandes eixos: as ações de Sustentabilidade Urbana, que estão relacionadas ao terreno e ao ambiente do entorno e as Construções Sustentáveis, que são aquelas que dizem respeito à eficiência da edificação.
No caso da Sustentabilidade Urbana, serão estimuladas as chamadas “Soluções Baseadas na Natureza”, que são intervenções que imitam processos naturais para gerar benefícios ambientais, como reduzir o calor ou gerenciar a água da chuva. Nessa lógica, entram os imóveis que adotam praças e parques, por exemplo.
No caso das Construções Sustentáveis, vão ser premiados com o incentivo fiscal os imóveis que implantarem soluções para o reuso da água, utilizarem fontes de energia renovável (como painéis solares), construírem paredes verdes e coberturas verdes, além de implementarem práticas de descarbonização da construção e elementos que contribuam para a melhoria da saúde mental por meio da paisagem, incluindo manifestações artísticas que valorizem a cultura local.
Mesmo estabelecendo as regras básicas para o funcionamento do benefício, o Plano Diretor não traz os detalhes de pontuação e percentuais de desconto. Isso deve constar em uma regulamentação futura, uma lei específica a ser elaborada depois da aprovação do PDPS.
Aplicação consciente
Muitos especialistas acreditam que o IPTU Verde pode ser uma maneira eficiente de garantir uma Fortaleza mais sustentável. Ainda assim, o benefício precisa ser concedido a partir de um rigor técnico e social.
“É preciso tomar cuidado com o uso dessas medidas, ver o que é o significado disso. Quanto que o município está perdendo? E o que ele está ganhando?” questiona o professor Renato Pequeno - Coordenador do Laboratório de Estudos da Habitação (LEHAB) da Universidade Federal do Ceará (UFC).
“Se for positivo, se for uma operação ganha-ganha, perfeito. Mas é preciso que haja um estudo caso a caso. Se eu vou garantir a melhoria do meu quintal, vou melhorar área de lazer do meu edifício e isso não traz nenhum rebatimento para a cidade, então isso não é justiça social, isso não é combate à desigualdade”, defende Renato Pequeno.
O presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil - Departamento do Ceará (IAB), Jefferson John, também defende que haja critérios claros e justos na aplicação para que os descontos não seja apenas uma “questão figurativa”. Algumas perguntas precisam ser respondidas.
“Ele vai construir usando materiais de reciclagem? Ou ele vai construir usando técnicas construtivas que utilizem menos água e gerem menos resíduos? Então precisa se aprofundar para que a gente realmente tenha na prática, não só o desconto ou não só a política, mas que a gente possa reverberar no uso dos materiais e na qualidade dos espaços que as pessoas vão habitar” pontua Jefferson.
Zona Especial de Comunidades e Povos Tradicionais (ZECT)
Zona Especial de Comunidades e Povos Tradicionais de Fortaleza
Plano Diretor de Fortaleza
Outra novidade importante do novo PDPS de Fortaleza é a criação da Zona Especial de Comunidades e Povos Tradicionais (ZECT). O zoneamento inédito atende a uma demanda histórica de proteção dessas comunidades, garantindo permanência no território e o modo de vida dos moradores.
"Nós temos três comunidades ali na área da Praia do Futuro, do Cocó, quase todas elas dentro do Parque do Cocó, que têm características muito próprias. Elas são comunidades tradicionais. Elas vivem e sobrevivem dessas áreas que estão em torno das suas casas", explica Artur Bruno.
Vão ser reconhecidas como ZECT as comunidades:
Boca da Barra, no bairro Edson Queiroz;
Olho D’Água, no bairro Manoel Dias Branco;
Casa de Farinha, no bairro Praia do Futuro II
Nessas regiões, os moradores preservam práticas seculares de subsistência e mantêm uma relação muito próxima com o território natural.
Casa de Farinha às margens do Rio Cocó, em Fortaleza existe há 70 anos.
Kílvia Muniz/TV Verdes Mares
A Casa de Farinha, por exemplo, existe há 70 anos e foi fundada pelo patriarca, já falecido, José Eugênio e sua esposa, Ana Alves. Às margens do Rio Cocó, ele desenvolveu uma forma simples e comunitária de existir, sobrevivendo da agricultura familiar, da pesca artesanal e do extrativismo por décadas. As práticas foram repassadas aos descendentes que, até hoje, reproduzem o manejo rural em uma das regiões mais valorizadas e nobres da capital cearense.
Entrar na comunidade, que tem cerca de 35 moradores, é uma viagem no tempo e um suspiro de ancestralidade. Édson da Silva é neto de José Eugênio e aprendeu com ele e o pai, Raimundo Batista, o ofício da carpintaria e os trabalhos com a palha da carnaúba seca. Hoje, garante renda produzindo e comercializando cobertas de palha para as barracas da Praia do Futuro.
"É uma forma de vida completamente diferente de quem mora nas áreas urbanas, né? A gente aprendeu muito com meu avô, que foi o fundador da nossa Casa de Farinha. A gente não se sente vivendo fora da comunidade, onde nós nascemos e crescemos aqui, né?", garante o carpinteiro.
Ana Alves da Silva e José Eugênio da Silva, fundadores da comunidade tradicional Casa de Farinha, em Fortaleza.
Arquivo Pessoal
A casa de farinha que dá nome à comunidade está desativada atualmente, mas há planos de restauração. Enquanto isso, o pai de Édson, Raimundo, de 68 anos, produz tapioca em um forno sustentável rústico de barro. É um anfitrião de mão cheia. “A gente providencia um banquete pro ‘caba’ ficar mais animadinho”, sorri enquanto oferece tapioca quentinha ao visitante.
Risco de desapropriação e falta de serviços básicos
Casa de Farinha às margens do Rio Cocó, em Fortaleza.
TV Verdes Mares
Com o reconhecimento dessa e de outras comunidades como ZECT, há grandes esperanças de segurança habitacional e social. O morador da Casa de Farinha, Neto Nascimento, conta que em 2016, durante processo de criação da Unidade de Conservação Estadual do Parque do Cocó, a comunidade por pouco não foi expulsa da região, localizada dentro da reserva.
O mesmo risco viveu a comunidade Olho D’Água. “A primeira proposta da poligonal do parque, ela estava na poligonal, aí fizeram um recorte, ela ficou de fora. Agora ela está no limite do parque, mas também é uma comunidade tradicional”, conta Neto.
Pertencendo a uma zona especial, a população espera conquistar não apenas o direito de continuar nas suas terras, mas ter acesso a serviços públicos básicos.
“A gente não tem energia regular, não temos água regular, não temos saneamento regular, temos uma via de acessibilidade precária”, pontua Neto.
“Se tiver uma ocorrência aqui para chamar um SAMU, um serviço público, não entra, não vem. Quando a gente vai fazer qualquer serviço, porque a primeira coisa que pede é o endereço, a gente não tem endereço. Muitas vezes a gente usa endereço de fora”, relata.
O professor da UFC Renato Pequeno chama atenção para o fato de que essas zonas especiais de comunidades tradicionais são remanescentes em setores da cidade que têm faixas de praia e beiras de rio.
"São áreas que são atrativas para o setor imobiliário. Quais são os meios que vão ser garantidos para que essa população possa permanecer lá? Para além da definição de zona, o que vai ser feito para garantir a preservação desses povos?", questiona o professor.
Para os moradores, a esperança é que a implantação da ZECT crie mecanismos para preservar e melhorar a qualidade de vida de povos que resistem mesmo com tantas pressões.
"Essas unidades passaram décadas invisibilizadas pelo poder público. Através desse instrumento, a gente tem a chance de fazer uma discussão junto com o poder público, apresentar, olha aqui, nós existimos, essa comunidade existe, essa comunidade está aqui, ela tem o seu modo de vida, tem seus costumes, tem sua forma cultural de viver", finaliza Neto.
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