Deputada quer suspender livro sobre religiões africanas e diversidade em escolas do Ceará
13/03/2025
(Foto: Reprodução) Em nota, a Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza afirmou que os dois livros não foram entregues devido a uma 'discrepância no processo de distribuição'. Ilustração do livro "E o medo, que medo tem?", alvo de polêmica no Ceará
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Escolas municipais de Fortaleza deixaram de receber dois livros de literatura infantil criticados nas últimas semanas pela deputada estadual bolsonarista Dra. Silvana (PL). A parlamentar acusou um dos livros de conter “mensagem subliminar” pró-LGBT, e o outro, que aborda a cultura afro, de pôr religiões de matriz africana "em posição de destaque em detrimento das demais".
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Os livros em questão são “E o medo, que medo tem?”, da autora Ana Paula Marques, e “Alfrabeto”, da autora Georgina Neves. Eles fazem parte uma coleção chamada PAIC Prosa e Poesia, distribuída pelo governo estadual aos municípios cearenses para serem trabalhados em sala de aula com crianças de até cinco anos.
O g1 teve acesso às duas obras. Nas suas 23 páginas, o livro “E o medo, que medo tem?” discute, de forma lúdica e com ajuda de ilustrações, os medos que assustam as crianças e adultos.
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Já no “Alfrabeto”, também 23 páginas, para cada letra do alfabeto a autora apresenta uma palavra vinculada à cultura afro, com um pequeno verbete de explicação. Na letra V, por exemplo, traz vatapá, e na letra Y, Yemanjá.
No dia 12 de fevereiro, Dra. Silvana apresentou dois requerimentos na Assembleia Legislativa do Ceará solicitando à Secretaria Estadual de Educação a suspensão da entrega dos livros às escolas municipais. Ela também publicou uma série de vídeos que descreve as obras como um ataque às crianças.
Os dois requerimentos apresentados pela deputada ainda não foram votados, mas foi pouco depois da apresentação dos textos na Assembleia que a autora Ana Paula Marques, do livro “E o medo, que medo tem?”, percebeu a ausência da sua obra nas escolas de Fortaleza.
“Eu tomei conhecimento desses vídeos da deputada no dia 15 de fevereiro, e só depois foi que eu vi a primeira professora do município de Fortaleza, conhecida minha, afirmando ter recebido na escola dela a coleção, até esse momento eu não sabia que a coleção tinha chegado incompleta”, contou. “Na semana seguinte foi que eu recebi uma primeira mensagem de um colega professor de educação infantil do município, dizendo, ‘Ana, chegou aqui a coleção na escola, só que só chegou 10 livros e está faltando dois, sendo um deles o seu’”.
Em nota, a Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza afirmou que os dois livros não foram entregues devido a uma “discrepância no processo de distribuição”, que eles obedecem à legislação e estão dentro “parâmetros educacionais nacionais”. (Veja o posicionamento completo abaixo)
Ilustração do livro "E o medo, que medo tem?", integrante da coleção PAIC Prosa e Poesia
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No requerimento apresentado contra o livro “E o medo, que medo tem?”, Silvana critica a obra por conter uma ilustração que seria um menino com roupa de bailarina. Ela também cita outra passagem, em que a mesma ilustração aparece junto a outros personagens com um arco-íris no fundo.
“Não é adequado ver um menino vestido de bailarina como se demonstrasse que assim ele estaria ‘vencendo um medo’, ‘se libertando’, uma vez que um menino nem imaginaria se vestir assim. Imagens como essa desperta a curiosidade de se vestir de bailarina como se fosse um ato de libertação ‘vencer o medo’”, escreve a deputada.
Já no requerimento contra o livro “Alfrabeto”, a deputada afirma que, com a obra, as escolas põem as religiões de matriz afro em posição de destaque, enquanto não se vê outras religiões como tema de livros.
“Existe uma problemática violenta no uso de livros paradidáticos ensinando de forma lúdica as religiões de matrizes afro, uma vez que não encontramos em nenhuma das edições dos paradidáticos do PAIC o cristianismo em evidência, em nenhuma de suas formas, nem evangélica, nem católica”, escreve a deputada no outro requerimento.
Trecho do livro "Alfrabeto", da coleção PAIC Prosa e Poesia
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Ao g1, Ana Paula Marques chamou de “infundadas” as acusações da deputada contra as obras, e destaca que o livro "E o medo, que medo tem?" sequer entra na questão do gênero da criança representada no desenho com roupa de bailarina, podendo ser um menino ou uma menina com cabelo curto.
"A parte específica que tem a ilustração que ela tanto critica, por exemplo, fala sobre medo de altura", explica Ana Paula. “Tem uma criança que está num jogo simbólico, de braços abertos, fazendo referência ao avião, que é a passagem do texto que está nessa página. Então ela [deputada] faz uma crítica à ilustração com base no próprio preconceito que ela carrega”, diz.
Escolas de Fortaleza sem os livros
A coleção Prosa e Poesia faz parte do Programa Alfabetização na Idade Certa (PAIC), do Governo do Ceará. Ela é publicada desde 2008 e já possui várias edições. Cada coleção é composta por 12 livros, selecionados pela Secretaria Estadual de Educação (Seduc) por meio de edital.
As coleções são entregues em conjunto, em um pacote comum, às escolas dos municípios cearenses. Os livros de Ana Paula e o de Georgina foram selecionados em 2022 para compor a coleção, mas a distribuição começou apenas em 2024 no interior do Ceará. Ela estava prevista para iniciar em fevereiro deste ano em Fortaleza.
Na última semana, porém, quando soube que algumas escolas da capital cearense haviam começado a receber o conjunto, Ana Paula descobriu que nos pacotes entregues faltavam seu livro e o “Alfrabeto”.
“As coleções, por exemplo, na Prefeitura de Maracanaú, chegaram lacradas, um pacote que já vem da própria editora fechado com os 12 títulos, só que em Fortaleza esse pacote chegou aberto contendo menos dois livros, esses dois livros que estavam faltantes eram exatamente os livros que tinham sido criticados pela deputada”, explicou Ana Paula.
Com o sumiço dos livros, professores e outros profissionais da educação começaram a se mobilizar para mapear onde os pacotes haviam sido entregues sem os dois livros. Isso aconteceu em pelo menos dez escolas municipais.
Duas fotos enviadas mostram um pacote entregue lacrado no município de Maracanaú, e outro pacote entregue sem os dois livros e com o plástico rompido, em Fortaleza.
À esquerda, pacote com os doze livros lacrados; à direita, o pacote entregue em uma escola de Fortaleza, com apenas dez livros
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A Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza, por sua vez, afirmou que os dois livros não foram entregues devido a uma “discrepância no processo de distribuição”, e destacou que as obras do PAIC estão dentro dos “parâmetros educacionais nacionais”. Confira:
“A Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza (SME) esclarece que todas as escolas de sua rede de ensino receberão os livros desenvolvidos pelo PAIC, cujas publicações obedecem à legislação e aos parâmetros educacionais nacionais. Cabe frisar que as publicações começaram a ser distribuídas para parte da rede nos últimos dias, mas, como não são acondicionadas de maneira uniforme, houve discrepância no processo de distribuição, havendo escolas que não receberam nenhuma das publicações até o momento ou escolas que receberam outros itens faltantes que não os listados na demanda. A projeção da SME é finalizar a entrega dos 12 livros da coleção nos próximos dias”, disse a secretaria.
O g1 entrou em contato com a Secretaria Estadual de Educação para entender se houve algum problema na entrega dos materiais didáticos, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
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